Já próximo da meia-noite os
feirantes, como zumbis silenciosos e decididos, ocupam o cenário que passou
todo o dia guardando um odor quase insuportável de sangue podre de peixe.
Se focado na porta entreaberta da
ermida gótica que preside esse cenário, vê-se sair uma figura estranha. Dir-se-ia
mesmo suspeita. A cabeça está coberta por um capuz e a veste talar negra que abriga esse vulto exibe uma silhueta esguia. Muito
descarnada, mas dominadora. Arrisca-se dizer que é majestosa. Os passos, de tão
leves, parecem sugerir uma flutuação. E isso empresta solenidade.
Aquele vulto atravessa as grades de
ferro maciço que protegem a morada de deus e perambula negligentemente por
entre as fileiras irregulares de mesas construídas com madeira ordinária e que
agora se alinham ao longo dos trilhos da antiga estrada, como se rumassem para
a velha estação do trem que não passa mais.
Não assusta ninguém aquele vulto. Nem
sei se se pode tê-lo como quase íntimo dos zumbis. É muito possível. O que se
diz é que cuida tão somente, parece certo, de perpetuar a sua ainda gloriosa vida
e as suas memórias malversadas, a custa da existência precária e dos registros
viciados dos feirantes inadvertidos das sextas-feiras.
Um homenzinho desfigurado,
frequentador da feira, que foi sempre visto na companhia daquela figura esranha,
jaz agora ao longo dos trilhos de ferro, entortados pela falta de uso. A cabeça
inerte daquele corpo está voltada para os lados da cadeia de serras altas que
marcam o lado oriental dessas paragens crestadas. Posta assim, ela cria a
impressão de uma mitra colossal esmagada contra os flancos. Os braços alinhados
ao cumprido do corpo quase dizem que a vida se esvaiu dali sem resistência,
quem sabe, até com prazer como dizem que ocorre nos martírios. Não tinha filhos
o homenzinho que esta noite foi a última companhia do vulto suspeito. Tinha
dedicado a vida a celebrar uma ceia em memória e a pedido do vampiro: hoc quotiesqunque feceritis, in mei
memoriam facietis.
O rosto dele está exangue. Está mais descorado
do que o dos bêbedos que perambulam de madrugada acompanhando o vulto vagabundo.
Os feirantes indiferentes aos restos
da noite já se alegram com a chegada barulhenta dos consumidores.
Foi nessa hora que o vulto, agora
revigorado pela transfusão consentida, recolheu-se no interior da ermida
gótica. Ele esgueirou-se furtivo, agora mesmo, pela meia porta aberta da sua
morada.
Por todo o dia ele será apenas uma
lembrança distante. Um nome invocado como um socorro, como uma ajuda, ou como
uma proteção ilusória.
É. Mas, seu repasto de sangue vivo acabou
mesmo próximo das 4h30 da matina. Nunca é precisa essa hora de findar. Define-a
a tênue claridade traiçoeira, que prenuncia os raios do Sol, insuportáveis de
tanta luz, inconciliáveis com a vida eterna, ameaçadores da letargia.
Aquele vulto abrigou-se nessa ermida
gótica há quase cem anos, mas não esqueceu os mais de dois mil passados nas
cavernas inferiores, lá nas proximidades da mansão dos mortos onde um dia foi
hóspede por três dias. Visita-as em intervalos casuais. Promove a restauração
dos espaços corrompidos e a faz com barulho, com tremor, com sismos, estrondos
assustadores. A terra treme. As rochas se fendem. Tudo como lá no Gólgota.
Na sexta-feira passada deu três
grandes estrondos em João Câmara. A parede da casa de D. Isaura rachou de alto
a baixo. O sismógrafo da Universidade registrou abalos de 3.2 na escala
Richter.
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